Em Maio, Ana Clara Guerra Marques regressou aos palcos para atender, apenas, ao "Programa de Concerto – Uma viagem pelo Tempo”, temporada 2023 da CDCA?
Sim,
pois achei que podia ser importante para esta nova geração de bailarinos eu
dançar em representação do primeiro elenco da CDC Angola. Por outro lado,
precisava de provar a mim mesma que continuava a poder dançar!
Treze anos depois, sem dançar publicamente, como se sentiu física e emocionalmente?
Há,
naturalmente diferenças. Mas eu sou perseverante. Por isso comecei a
preparar-me com bastante antecedência, fazendo aulas de técnica e ensaiando de
forma intensiva até ficar com a forma necessária para me poder apresentar. O
facto de voltar ao palco como bailarina, tanto tempo depois, provou que uma vez
do palco, para sempre do palco (!), ou seja, não foi necessária uma nova
habituação ao público. Mas foi emocionante, não o posso negar.
Por que escolheu a coreografia "Solo (PA.RATI)”? para marcar o regresso aos palcos?
Porque
este solo foi feito por mim e para mim, e porque sempre o quis voltar a dançar.
Trata-se de uma coreografia que tem um significado muito especial.
"A Maçã”, fragmento da peça "Mea Culpa” (1992), com Ana Clara Guerra Marques e João Paulo Costa, exibida em vídeo no decorrer do espectáculo desta temporada, evoca uma história bíblica sobre Adão e Eva?
De
certo modo, sim. A ideia da peça completa (Mea Culpa) era fazer uma crítica às
proibições fundamentalistas e, de certa forma, hipócritas da igreja/ religião,
quanto às relações afectivas livres entre as pessoas. Nessa peça abordavam-se
as questões de género, a adoração fanática e quase carnal das pessoas pelas
imagens sagradas, o desejo e o amor simples e natural. Nesse fragmento, o dito
pecado original é apresentado como uma manifestação natural entre duas pessoas
e a maçã é oferecida pelo homem à mulher que, dissipada a dúvida inicial, acaba
por aceitar a partilha. A maçã é boa para comer e é saudável, como o amor.
Além do pendor antropológico, foi intencional a montagem da peça "A Maçã” no sentido de transmitir uma carga sensual e emotiva muito forte aos espectadores?
Esse
é um fragmento que revela a paixão entre duas pessoas e isso é perceptível aos
olhos de todos, como foi a minha intenção. O objectivo era, de certa forma,
chocar ou agredir os que disso fazem tabu. Mas, toda a peça "Mea
Culpa" era muito intensa e crítica. E toda a dança contemporânea é muito
interventiva e irreverente.
"Programa de Concerto – Uma viagem pelo Tempo”, temporada 2023 continua este mês (de 16 a 19 de Novembro), no Instituto Guimarães Rosa, aqui na capital do país. Será, novamente, a bailarina para abrir as sessões tal como ocorreu em Maio?
Claro!
Normalmente as pessoas "com estatuto” cultivam a prática de aparecer no final.
Eu não sou assim e acho que a simplicidade e a modéstia devem nortear a nossa
vida. Abri e abrirei a porta, como sempre, para dar entrada e visibilidade aos
mais jovens…
Como avalia a recepção do público vendo-a a dançar depois de uma década? E que comentários ouviu?
Em
realidade sou daquelas artistas que, de tanto respeitar o público, gosto que as
pessoas sejam livres de interpretar, aceitar, gostar, ou não, através das suas
sensibilidades pessoais. Acho que as pessoas se surpreenderam e acredito que
tenham gostado, a julgar pelos aplausos no final. Foram muitos os comentários
destacando aqui um, de uma das minhas primeiras alunas, que dizia que ao ver-me
dançar ficou com a impressão de que o tempo não havia passado para todos. Foi
como se o início da viagem com todos (eu e os meus alunos daquela época) se
tivesse perpetuado. Sobretudo os comentários de antigos bailarinos e alunos
foram bastante comoventes.
Depois dessa temporada, ficará novamente fora dos palcos?
Pois
não sei! A imprevisibilidade é característica minha e do meu trabalho criativo!
Afinal, em Angola quem foi a pioneira da dança clássica?
Terá sido a minha primeira professora, Maria Helena Coelho que, nos finais dos anos 60, antes da independência, abriu e dirigiu a única instituição de ensino profissional que existia em Angola, a Academia de Bailado de Luanda.
Já a
introdução da dança contemporânea e do profissionalismo em dança, se me é
permitida esta informação que penso ser relevante, esteve a meu cargo, nos anos
80 enquanto directora da Escola Nacional de Dança e nos anos 90 com a criação
da Companhia de Dança Contemporânea que veio revolucionar o terreno conservador
que era a dança no nosso país.
Antes da existência da CDCA, o que existia em Angola em termos de companhia de dança ou grupos de dança clássica?
A
CDC Angola não é uma companhia de dança clássica. Este programa de Concerto,
que começou a ser implementado logo no início da companhia, com obras em outros
géneros, nomeadamente a dança clássica, visou sempre divulgar e informar o
público, de forma paralela, desta multiplicidade de linguagens e géneros que a
dança cénica possui. Isto porque não existia nenhuma companhia clássica ou de
repertório que o fizesse. Tal também foi possível porque os bailarinos da
companhia provinham da escola onde a dança clássica era uma das disciplinas
ensinadas com o devido rigor.
Antes
da CDC Angola não existia nenhuma companhia profissional. Mesmo no tempo
colonial não existiam companhias profissionais de dança no território de
Angola.
Aonde e com quem a bailarina Ana Clara Guerra Marques aprendeu a dançar?
Naquela que, como referi, era a única instituição de ensino profissional que existia em Angola, a Academia de Bailado de Luanda. Foi minha professora, a Maria Helena Coelho que, curiosamente, voltou a ser minha professora no programa de Mestrado! Com ela aprendi os primeiros passos e fiz o meu ensino elementar em dança.
Mais
tarde, entre os anos 80 e 90, tive bons professores russos e cubanos na Escola
Nacional de Dança (da qual era directora e professora, mas também bailarina)
que contribuíram para o meu amadurecimento técnico, artístico e pedagógico.
Destaco os nomes de Anatoli Fomine e de Ludmila Lavrina, ambos russos e
professores de técnica da dança clássica e de metodologias do ensino da dança,
e de Johannes Garcia e Ileana Balmori, de nacionalidade cubana e professores de
técnica da dança moderna e suas metodologias. Foram estes que me prepararam,
depois da independência para a minha carreira de bailarina.
Lembra-se de nomes de alguns ou algumas colegas, daquela época?
Claro!
De todas: a Carla, a Maria José, a Cristina, a Ximene, o Miguel (só havia um
rapaz na minha turma), a Filomena, a Sónia e a …. Só me falta uma. As turmas de
dança são pequenas para que o professor possa corrigir e atender a todos os
alunos.
E a sua ascensão como coreógrafa como se processa, quais foram as premissas?
Era
preciso coreografar para os espectáculos de fim de ano dos alunos da Escola de
Dança. Aí me fui iniciando até ao dia em que decidi fazer, para a Escola de
Dança, uma obra completa de uma hora: "A Propósito de Lueji" (1991).
A partir de aí, foi seguir em frente, inspirando-me, sempre, na sociedade e no
país em que vivemos.
Os bailarinos da CDCA têm salário mensal?
Sim,
na CDC Angola apenas os bailarinos têm um salário mensal e descontam para a
Segurança Social. Mas, recebem muito aquém daquilo que merecem pelo grande
trabalho que desenvolvem. Trabalham entre 6 a 8 horas por dia como qualquer
outro cidadão.
"Programa de Concerto – Uma viagem pelo Tempo” é, também, uma homenagem aos antigos bailarinos solistas da CDCA. Que recordações tem da época desses bailarinos solistas?
Nesse
tempo, metade desses bailarinos possuíam uma formação superior em Dança, pelo
que os espectáculos tinham, naturalmente, um nível técnico superior. Mas havia
a particularidade de todos eles terem sido meus alunos desde criança, o que era
para mim motivo de grande orgulho. Eram tempos de grandes esforços, mas de
enorme energia e ainda alguma esperança no futuro.
Algumas coreografias são acompanhadas por obras musicais de autores estrangeiros, alguns em vida. Como equacionam a questão dos Direitos de Autor?
Quando
a música é criada expressamente para as peças da companhia, assinamos contratos
com os compositores. Noutras
circunstâncias ou se obtém directamente a autorização dos autores ou, quer
dentro quer fora do país, cumprimos a prática de nos dirigirmos às Sociedades
de Direitos de Autor para formalizar e legalizar a utilização dessas músicas.
Quando terminar a presente temporada, o que pensa a directora da CDCA oferecer ao público?
Se
tudo der certo, viajaremos pelas províncias com a peça "Isto é uma mulher?”,
repetiremos este espectáculo em Luanda e já tenho outra ideia para a criação de
outra peça em mente! Mas ainda não vou partilhar!
O seu legado, quer como bailarina quer como coreógrafa, vai se resumir às obras ou intervenções artísticas produzidas pela CDCA?
Após
tantos anos de trabalho, de intervenção, de defesa do ensino profissional e da
qualidade artística; depois de tantos anos a dançar, a coreografar, a
investigar e a publicar; depois de
tantos anos a aturar, combater e denunciar pessoas insensíveis, incultas,
ignorantes, maldosas e complexadas; depois de tantos anos a defender uma causa
que sempre soube fundamental para o desenvolvimento de um país: uma educação
cultural e estética de qualidade para a elevação intelectual da sociedade;
depois de tanto fazer e lutar, as minhas memórias são já um emaranhado. Mas um
emaranhado tão sólido como as raízes de um imbondeiro. E isto ninguém nos pode
tirar. Milhares de pessoas testemunharam e continuam a testemunhar. A dança é
efémera mas é pública! E é isto que faz a diferença entre mim e outros cujos
pés são tão pequenos que continuam a não dar para se erguerem acima do muro da
invisibilidade.
"Apesar de todos os obstáculos que lhe são impostos, persiste na sua cruzada em prol da elevação e defesa da dança como linguagem artística em Angola, quer enquanto bailarina como coreógrafa”. Essa afirmação consta da sua biografia na "Wikpédia”, quais são esses obstáculos?
O maior dos obstáculos é a recusa de apoio institucional que se verifica até hoje. A verdade é que nunca houve a coragem de reconhecer (existindo mesmo um certo desprezo) a companhia como uma instituição idónea com utilidade para o desenvolvimento social, dado o seu percurso e actividade de 30 anos com competência e qualidade.
É triste percebermos que somos motivo de orgulho fora do país, mas que aqui somos ignorados por quem de direito, que deveria estabelecer um programa de apoio regular, tal como acontece com outras companhias em outras partes do mundo. A companhia nunca teve um espaço próprio com as condições necessárias para, por exemplo, poder partilhar conhecimentos com a comunidade que é um dos nossos objectivos. Perante a indiferença de todos já ensaiamos em lugares impróprios, em quintais, varandas, salas de restaurantes, etc, que amigos nos punham à disposição. Isto para não falar na falta de teatros, assunto que já superámos fazendo espectáculos fora de portas, ao ar livre. Somos muito gratos pelo apoio da Fundação BAI, sem o qual nem existiríamos e que tem na sua direcção pessoas cultas e com sensibilidade. Mas, estamos sempre em risco, e sempre com dificuldades financeiras, pois, a fundação apoia mas não é mecenas exclusivo. E etc, sempre durante os nossos quase 32 anos de existência.
"Os
meus pais sempre me apoiaram”
Se
não estudasse Dança estaria formada em Economia?
Não,
não teria. Justamente, eu abandonei a Faculdade de Economia no 3º Ano, pois era
insustentável para mim continuar a lidar com números, saldos, estatísticas,
balanços e balancetes. Seria hoje uma empresária de sucesso e rica?
Eventualmente. Era esse o meu objectivo de vida? Não. Acho que às pessoas, é
importante falar-se com o coração, ainda que os números se vejam desfocados.
Teve influência dos seus pais para seguir a carreira artística?
Os
meus pais sempre me apoiaram. Aliás, foram eles que me inscreveram na Academia
de Bailado, quando era criança. Eles perceberam a minha infelicidade estudando
Economia, aceitaram que desistisse com a condição de me formar, a nível
superior, em Dança. E assim foi cumprida a promessa.
Tem filhos que estão a seguir os seus passos?
Não. Apesar da minha filha tenha feito Dança, enquanto criança e seja uma pessoa muito sensível à arte, optou por uma formação na área da Economia.
O seu marido é cineasta. Como é que Dança e Cinema se articulam no lar?
Quer
a dança quer o cinema são artes do movimento e para serem vistas. Há grandes
afinidades e cumplicidades. Por outro lado, o Jorge António é o produtor
executivo da CDC Angola. Tudo corre com arte e mestria!
Como o casal consegue sobreviver da arte? Qual é a fórmula?
Ao contrário do que as pessoas pensam, os artistas devem ser pessoas com sólida formação académica. Assim, quer eu quer o Jorge António, além das criações artísticas (coreografias e filmes) damos aulas em universidades, publicamos livros e desenvolvemos outras actividades intelectuais paralelas. É difícil viver da arte em Angola? É! É possível viver como artista? Sim, para o nosso caso, já que a nossa formação nos abre um maior campo de acção e de possibilidadesFonte: JA