Cultura
08 Novembro de 2023 | 16h49

Cavisita Lemos defende internacionalização de personagens da tradição oral angolana

A escritora Cavisita Lemos defendeu a necessidade de a literatura angolana incorporar e internacionalizar as mais diversas personagens que fazem parte da riqueza da oralidade dos povos de Angola. Em entrevista a ser publicada na íntegra na edição do jornal CULTURA, título da Edições Novembro, que chega às bancas amanhã, a escritora Cavisita Lemos aborda os meandros da criação da personagem Jacaré Bangão, que tem vindo a dar vida nos seus livros, que já conta com três publicações da mesma colecção, nomeadamente “Jacaré Bangão e as Pedras Mágicas”, um título que tem como público alvo as crianças e cuja primeira edição foi disponibilizada em 2013.

A escritora voltou a investir na mesma personagem para dar vida a  "Jacaré Bangão – A Lenda em Línguas Nacionais”, um livro educativo que tem como grande finalidade  dar  espaço e visibilidade às línguas nacionais. Editado em 2015, o livro foi traduzido em 8 línguas nacionais. O terceiro da colecção foi editado este ano e tem como título "Jacaré Bangão Contra o Coronavírus e Tour Pós-Covid-19”, que aborda com muita imaginação e cor hábitos de higiene para prevenção contra o coronavírus. Ilustração de Manuel Victorino, a obra faz parte do plano de leitura obrigatório no ensino nacional. Prefaciada pela professora Luísa Grilo, ministra da Educação, a obra conta, em estilo banda desenhada, o impacto da pandemia do coronavírius na sociedade angolana e faz, para o período pós-Covid, um convite à retoma da actividade turística.

"Com subtileza, a autora desenha esse momento, consubstanciado na actividade turística, nas visitas a lugares de lazer e da história socio-cultural do país e faz um apelo para a preservação do meio ambiente. A autora traça a última linha do seu livro com o Bangão a bordo do Ango-Jac, augurando, através do estudo e da formação, um futuro de prosperidade para todas as crianças angolanas”, escreve a ministra Luísa Grilo no prefácio.

Segundo explica Cavisita Lemos, a escolha da personagem Jacaré Bangão resultou por ser uma das figuras de referência da região de onde o seu  pai é proveniente. Antes de avançar com a escolha,  foi aconselhada a contactar os mais velho Prado Paim e Elias Dya Kimeuzo, para que pudesse obter alguma matéria consistente que lhe permitisse escrever a banda desenhada sobre este símbolo da província do Bengo.

"O processo de criação do livro Jacaré Bagão começou primeiro por ir visitar a estátua no Bengo. Olhar para estátua e dizer e perceber que sou sua discípula. Porque as histórias que ouvi retratadas pelos mais velhos me fizeram crer que de facto é um herói. Por isso, é o nosso Urso Panda ou deve ser a nossa Hello Kity”, argumentou.


A passagem da oralidade por via das tias

Filha de Manuel Domingos da Silva Lemos e Maria da Silva Pimenta Lemos, é quarta filha de oitos irmãos. Nasceu em 1963, no bairro do Rangel, em Luanda,  mas por força das circunstâncias de trabalho dos seus pais teve alguns anos de vivência em Portugal. Só depois andou por Benguela e partes do Sul do pais. Enfermeiros de profissão, a mãe era parteira licenciada pela  Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, período em que a família viu-se obrigada  a ficar um tempo a viver em Portugal. Regressaram para Angola e até em 1975 permaneceram em Benguela, no Lobito. Em 1975 regressam a Luanda. Recorda que nas famílias tradicionais tem sempre um tio ou uma tia em casa para cuidarem dos sobrinhos.

"A minha grande fonte de inspiração foi a minha tia Gigi. Por isso, tenho me assumido como sobrinha de tios, a nossa casa esteve sempre acompanhada pelos tios e irmãos mais novos, e ouvíamos várias vezes a minha tia Catarina e o meu tio Maneco a falarem de dikixi e mukixi. Contavam-nos aquelas histórias enquanto penteavam os nossos cabelos embaraçados. O tempo foi passando, e eu sempre com curiosidade de conhecer o diquixi  e o muquixi, até porque no meu tempo a literatura que tínhamos ao nosso alcance eram as colecções da Anita, Asterix, o pato Donald, e zorros para os rapazes”, recordou.

Cavisita Lemos lembrou como o seu pai era muito rigoroso  na selecção dos livros, detalhando que foram crescendo naquele ambiente, que permitia que fossem meninas exemplares. Em casa era incentivada que seguissem os exemplos da Anita. Entretanto, Cavisita Lemos vivia outra realidade quando estivesse na companhia das suas tias, que não falavam da personagem da Anita mas sim de figuras de outros contos, onde encontrava o Kambumbum, dikixi e mukixi, figuras que eram passadas com a tradição oral. Um pouco depois, foi na fase adulta que decide criar a sua linha de identidade, porque considerava-se uma pessoa muito carente em relação à questão de identidade cultural.

 "Sempre me opus ao uso do pano de kongo, inclusivamente ao nome pano do kongo. Por quê pano de kongo, se nós somos angolanos e estamos em Angola. Por quê nos dias de África temos que nos vestir todos imitando as vestes e os gostos de outros países irmãos africanos?  Por quê não tínhamos um pano estampado com os nossos desenhos?  Então, isso sempre me fez muita confusão e criou em mim alguma interrogação e vontade de pesquisar”, partilhou.

A escritora aponta que uma das suas frustração com a qual convive  é o facto de não saber falar a língua materna. Amante da música tradicional, manifestou sentir-se incomodada por dançar uma música das nossas sem saber o que ela realmente transmite.

Por essa razão,  resolvi então criar a linha de identidade, que intitulei colecção "Kavy” e que consistia, de A a Z, na louça de porcelana, isto em 1999, produzida na Europa. Uma gama de que enaltecia e criava emblemas para o quotidiano dos angolanos , desde artigos de decoração, as loiças, os tecidos, o velho sonho do tecido angolano, a roupa de cama têxteis, e dentro dos têxteis de lar surgiu o lado infantil, desde o mobiliário , tapeçaria, tudo com uma temática  angolana. Foi neste espírito de busca que pensei  em escrever o meu  primeiro livro do Jacaré Bangão”, avançou.

A escritora cresceu num ambiente familiar que valorizava a educação e a cultura, tendo influenciado bastante a sua trajectória como contista e advogada. Foi-lhe outorgado o diploma de honra pelo Ministério da Cultura e Turismo, em 2014.


Fonte: JA