Saúde
19 Junho de 2023 | 11h46

Médicos aconselham a fazer exames para evitar a transmissão da enfermidade

Eram 10h00 da manhã, quando Charles Santana, de 10 anos, chegou ao Instituto Hematológico Pediátrico Victória do Espírito Santos, ao colo da mãe, porque já não conseguia dar nenhum passo, muito menos ficar em pé.

A mãe, Joaquina Panzo, disse que a criança se queixava de fortes dores nas articulações e nos ossos. Ao ver o sofrimento do filho, apenas chorava. Ela estava na praça do Kikolo, a vender, quando o filho mais velho, de 15 anos, correu até lá para avisar que o Charles tinha desmaiado.

Ao ver que a mãe demorava para chegar, um vizinho, de porta, levou o menino ao Hospital Municipal de Cacuaco, onde recebeu os primeiros socorros. Tão logo Joaquina chegou, foram encaminhados ao Instituto Hematológico Pediátrico.

Ao chegar ao banco de urgência do hospital, uma das enfermeiras que já conhecia o histórico clínico de Charles Santana, recebeu imediatamente o menino e procurou prestar assistência para acalmar as dores, por ser um doente crónico.

Claramente esgotada, quer do ponto vista físico, quer emocional, Joaquina Panzo disse que existem épocas do ano como esta, de cacimbo, em que a sua vida se resume ao trajecto hospital-casa e vice-versa, devido às sucessivas crises do filho. "Já nem lembro o número de transfusões de sangue que ele fez e o dinheiro gasto nas medicações”.

O sofrimento, contou, é tanto que só dá vontade de chorar. "Às vezes fica muito difícil. O Charles tem crise muitas vezes.  Quando fica assim, não consegue comer, perde muito peso e só lhe dá vontade de ficar no meu colo. Não consigo fazer nada. Perdi o emprego por ficar horas a cuidar dele. Agora vendo e consigo lhe prestar mais atenção, isso já há quase sete anos”, contou.

Embora seja doente crónico, Charles vai à escola e estuda a terceira classe. Quando completou seis meses de vida, recordou, começou a chorar muito e sem motivos aparentes. Depois, a perda de peso passou a ser notória. "Então, o levamos ao hospital David Bernardino, onde começou a fazer as consultas”, disse, acrescentando que depois de vários exames, os médicos diagnosticaram-lhe células falciformes, pelo facto de os pais serem portadores de genes dessa doença, embora não soubessem na altura.

"O pai de Charles ficou surpreendido com o diagnóstico e me acusou de ter passado a doença ao filho, por ser um mal da minha família. Não acreditou nos resultados médicos e preferiu repetir todos os exames na clínica Multiperfil, onde recebeu o mesmo diagnóstico, de que também era portador de células falciformes”.


Mudanças

Hoje, referiu, o pai de Charles encara a doença com outros olhos e quando a esposa não pode levar o filho às consultas, ele o faz e inclusive já esteve internado com o menino.

Por conta da doença e por serem portadores dos genes da falciformação, o sonho de terem quatros filhos acabou. O filho mais velho do casal, apesar de nunca ter tido dores, também é portador da doença. Charles, o segundo filho, tem os acessos desde os seis meses de vida, situação que causa vários transtornos à família. Por isso, o casal decidiu ter, apenas, dois filhos, evitando assim mais sofrimento.


  Uma doença genética e de carácter recessivo

O médico hematologista Feliciano Mangove explicou que a doença de células falciformes ou simplesmente falciformação, é genética e de carácter recessivo (adquire-se traços do pai como da mãe). O ponto fundamental, esclareceu, é a alteração na estrutura normal da hemoglobina, que é a parte do sangue responsável pelo transporte de oxigénio para todo o corpo.

De acordo com o especialista em Hematologia, a presença da anemia falciforme é causada por uma quantidade elevada de hemácias deformadas. Em pessoas normais, disse, as células de transporte de gases, conhecidas como eritrócitos ou glóbulos vermelhos, têm a forma arredondada côncava e flexível, e possuem em si moléculas de hemoglobina, que são responsáveis por fazer as ligações gasosas.

 Essa constituição, prosseguiu o médico, permite que essas células consigam executar a sua função mesmo através dos mais finos capilares. A formação dessa hemoglobina, acrescentou, é determinada por um par genético no cromossoma 11, que muda rapidamente nas pessoas com traços falciformes. "Neles, há a presença de, ao menos, um gene mutante, que leva o organismo a produzir a hemoglobina (S) que é a grande responsável pela alteração no formato dos glóbulos vermelhos (falciformação) que caracteriza a doença”.

Em relação às formas de transmissão da doença de pai para filho, o médico  hematologista informou ser necessário que ambos os pais sejam portadores de células falciformes para que nasçam filhos doentes. "Numa gestação, o filho pode herdar do pai a hemoglobina (S) e da mãe também a hemoglobina (S), logo este filho passa ser (SS) o que significa doente de células falciformes”.

O mesmo casal, explicou, numa outra gestação, podem ter filho que herda a hemoglobina A do pai e S da mãe, então vai nascer (AS), por isso pode ser apenas portador de células falciformes e não doente. Este casal, do ponto de vista genético, nunca terá filhos com hemoglobinas AA, porque os dois são portadores. "Os seus filhos só podem ser SS ou AS”, realçou.

De acordo com o médico, se apenas um dos pais for portador de células falciformes os filhos podem nascer sem quaisquer traços da doença, porque na altura da fecundação, estes podem herdar a hemoglobina (A) do pai e da mãe, sendo (AA), ou seja uma pessoa saudável. "Por isso que, apesar de um dos pais ter essas células, o resultado dos exames dos filhos dá negativo”, acentuou.

 

Uma análise ao sangue

Feliciano Mangove disse que não existe uma especialidade única para detectar a doença e qualquer médico pode fazer o diagnóstico, basta pedir uma análise de sangue, denominada "electroforese de hemoglobina”, que confirma a presença da hemoglobina anormal (S).

Caso dê positivo, informou, é só encaminhar o paciente aos centros especializados para fazer um acompanhamento mais pormenorizado da doença, como o hospital hematológico Pediátrico Victória do Espírito Santos, a Divina Providência, ou o Josina Machel, em Luanda.

O outro lado da mesma história

Ao contrário de Joaquina, que tem o apoio do esposo, Cândida Velasco não teve a mesma sorte. Quando o marido se apercebeu que também era portador de traços falciformes e que, por isso, um dos filhos nasceu com a doença, abandonou o lar sem deixar rasto, alegando que os filhos não eram dele.

Cândida Velasco também é mãe de dois filhos e conta que descobriu a doença, apenas no segundo filho, quando este tinha dois anos e teve um paludismo que demorou a curar. Hoje com dez anos, Erick é um doente frequente no Hospital Hematológico Pediátrico Victória do Espírito Santo.

O Erick é de estatura franzina e tem olhos amarelados. Aquando da reportagem, estava a receber soro. Devido às crises frequentes, o menino nunca foi matriculado numa escola. A mãe tem medo que o filho seja desprezado pelos colegas e professores.

Durante a reportagem, a equipa do Jornal de Angola foi informada que o menino tinha recebido uma transfusão de sangue, mas a hemoglobina ainda estava baixa e queixava-se de dores nos ossos, barriga e peito.

"É muito triste ver um filho nesta situação. Se soubesse antes que era, com o pai das crianças, portadora de células falciformes não teria feito filhos com ele, porque é muito sofrimento. Já não trabalho. Fui despedida. Hoje, vendo algumas coisas e os meus irmãos também ajudam muito”, disse com tristeza. 


Aumentar o conhecimento do público sobre a doença

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que a cada ano nasçam entre 300 a 400 mil crianças portadoras de células falciformes. Deste número, 230 mil são da África subsaariana.

O dia 19 de Junho foi oficialmente designado como o Dia Mundial da Consciencialização da Doença Falciforme, em 2008, pela OMS com o objectivo de aumentar o conhecimento e a compreensão do público sobre a doença e os desafios vivenciados pelos pacientes, familiares e os próprios profissionais de saúde.

A descoberta da doença falciforme ocorreu  por meio da genética clássica, sendo a primeira doença molecular humana a ser descoberta. O médico e pesquisador brasileiro Jessé Accioly propôs, em 1947, a hipótese da hereditariedade da doença falciforme. Em 1949, James Van Gundia Neel a comprovou experimentalmente.


  Sinais de manifestações visíveis dos cinco aos seis meses de vida

O hematologista explicou que, geralmente, a doença de falciformação pode começar a manifestar-se nos bebés a partir dos cinco aos seis meses de vida, porque, é nessa fase, que vão desaparecendo os traços da hemoglobina fetal trazida desde o ventre e começa a ter a própria hemoglobina, baseada nas informações genéticas herdada dos pais.

"Logo, se os pais tiverem traços falciformes, o filho vai manifestar estes a partir dos seis meses de vida. Entre os primeiros sinais da doença constam os inchaços nas mãos e nos pés, anemia, palidez na palma das mãos, planta dos pés, olhos, lábios, língua e dores intensas em qualquer parte do corpo. A doença afecta também vários órgãos do corpo como o coração, fígado, baço, cérebro e pulmões”, frisou o médico.

Feliciano Mangove acrescentou que os cuidados com os pacientes falciformes devem começar no início do diagnóstico, para que as crianças tenham um tratamento diferenciado, por serem doentes mais propensos a infecções.

Por isso, advertiu, as pessoas com anemia de células falciformes devem ter uma alimentação equilibrada, beber muitos líquidos e, acima de tudo, cumprir rigorosamente o calendário nacional de vacinação, principalmente as vacinas que combatem infecções graves, causadas por um agente denominado pneumococo, muito agressivo aos doentes falciformes.

Por conta dessa vulnerabilidade no organismo, estes doentes podem ter infecções bacterianas e, nos casos mais dramáticos, chegam a ter Acidentes Vasculares Cerebrais (AVC). "Como é uma doença ligada à hemoglobina, que tem a função de transportar o oxigénio para toda as partes do corpo, com essa deficiência, os órgãos sofrem uma lesão progressiva e crónica daí que, o baço e o fígado aumentam de tamanho”, realçou.

O hematologista alerta por isso aos pais a estarem mais envolvidos na assistência médica, levando os filhos regularmente às consultas, isto permite que haja melhoria na qualidade de vida dos doentes. 

Pelo facto de existirem relatos de pais que perdem os empregos por internar constantemente com os filhos, Feliciano Mangove defende que o Estado subvencione o completo tratamento do doente falciforme, como forma de ajudar as famílias a tornar este fardo mais leve.


Mil casos novos foram registados no ano passado

O director do Instituto Hematológico Pediátrico, Victória do Espirito Santo, disse que, durante o ano passado, a unidade sanitária registou mil casos novos da doença de falciformação.

Francisco Domingos informou que em relação às urgências os números variam e algumas vezes são registados 80 a 100 casos por dia. Destes, adiantou, 15 a 20 acabam por internar. Os outros pacientes são atendidos no ambulatório, com medicação específica, depois vão para casa.

Em relação ao número total de doentes no país, Francisco Domingos explicou que dados da Direcção Nacional de Saúde Pública dão conta que 20 por cento da população angolana é portadora de células falciformes e dois por cento são de facto doentes.

O médico pediatra acredita que os dados não são tão profundos, "porque se for feito um rastreio bem mais profundo, vai se perceber ser um número bem maior do que o actual”.

Para Francisco Domingos, é preciso que os pais e médicos tomem maior atenção com os doentes falciformes, tenham em atenção a metodologia de seguimento destes pacientes, desde a assistência primária, secundário e terciária, assim como a questão do aconselhamento das pessoas que são portadoras e casam com outro igual.

  Um mal potencialmente prevenível

Na opinião do hematologista  Feliciano Mangove, a doença de falciformação é potencialmente prevenível. Mas, para tal, é muito importante que cada um saiba o estado de saúde em relação à doença, para reduzir ou evitar ter filhos com anemia de células falciformes.

De acordo com o médico, a taxa de mortalidade por anemia de células falciforme nos países em vias de desenvolvimento ainda é muito alta, principalmente nos primeiros cinco anos de vida.  "Um dos motivos é a falta de profissionais competentes para fazerem o diagnóstico e acompanhamento contínuo destes pacientes”. 

 

Medicação diária

Todos os dias, os doentes de anemia falciforme devem tomar o ácido fólico e hidroxiuréia, assim como antibióticos específicos sempre que necessário, para prevenir as formas graves da doença.

O médico disse que os medicamentos nem sempre estão disponíveis em todas as unidades onde se faz o acompanhamento dos doentes falciformes. "Logo, fica complicado para muitas famílias com poucos recursos adquirirem os fármacos, o que complica mais ainda o quadro de alguns pacientes”, lamentou.

Sobre o acompanhamento dos doentes, o hematologista explicou que este deve ser multidisciplinar, envolvendo vários especialistas, porque a doença atinge vários órgãos. No caso específico dos homens, esclareceu, normalmente, quando atingem os 10 ou 12 anos desenvolvem o priapismo, que é a erecção prolongada e dolorosa do pénis, devido à falta de oxigénio no sangue.

Neste caso, prosseguiu o especialista, estes pacientes também devem ser seguidos por um urologista, para com uma medicação adequada, reduzir os sintomas. "Se não for controlado, os doentes podem vir a se tornar infértil na vida adulta”.

Questionado se todos os pacientes falciformes têm carência de ferro, o hematologista explicou que nem sempre a anemia de células falciformes representa carência de ferro, como muitos defendem, embora, algumas vezes, esteja associada, porque a falciformação destrói rapidamente as células.

"Em média, uma célula tem uma duração de vida de 120 dias, mas na anemia falciforme as células vivem apenas 30 dias. Para se produzir novas células é preciso nutrientes como o ferro”, explicou.

Fonte: JA